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COM SÍNDROME DE USHER
E A SEUS FAMILIARES, PROFISSIONAIS E AMIGOS
ENTREVISTAS
11/2020
Ana Carolina Gonçalves Nogueira
A santista Ana Carolina
de 32 anos é a nossa entrevistada desse mês.
Ela nos conta como enfrentou as barreiras da síndrome de Usher e como lida com isto diariamente, principalmente em seu trabalho como advogada.
Confira!
1) Ana Carolina conte para nós como descobriram sua surdez.
Meu pais são primos (assim como meus avós paternos também). Quando a minha mãe estava grávida de mim, sou a segunda filha, o médico disse: “Tem alguma coisa aí que não consigo descobrir...” Mas naquela época a medicina não era avançada e a ela deixou para lá... Minha mãe perdeu dois filhos com Síndrome de Down (não sei ao certo se foram os dois antes de mim ou um só, não me recordo mais). Quando nasci, foi realizado os exames que são obrigatórios: dos pezinhos e orelha. Mas nada foi detectado... Mas não tive uma vida normal como uma ouvinte. Meu avô paterno sempre desconfiava, até que quando tinha uns 2 anos de idade, eu não falava nada. Só apontava tudo o que eu queria e o meu avô falou que eu tinha deficiência auditiva e pediu para os meus pais me levarem ao médico. Fiz todos os exames em São Paulo, foi a descoberta de que eu nasci surda. E a minha mãe recebeu a seguinte notícia: “Ah mãe, é só comprar os aparelhos e que ela volta a escutar”. Na época foi descoberta como perda auditiva neurossensorial moderada bilateral e a deficiência na memória auditiva. Hoje tenho a perda auditiva neurossensorial severa bilateral.
2) A partir daí você passou usar aparelhos auditivos?
Sim, comecei a usar os aparelhos bilaterais, o do tipo retroauricular. Depois o intracanal, microcanal com 10 até os meus 30 anos e hoje voltei para o retroauricular na qual me adaptei.
3) Você teve dificuldades em acompanhar as aulas na infância? Sofria bullying?
Sim, sempre tive, mesmo com acompanhamento com a fonoaudióloga. Meus professores praticamente sempre foram: minha família e o meu cunhado. Meu irmão mais novo, era um ano antes da escola, mesmo assim, me ajudou um pouco. Sofria demais por causa do bullying. Mas é aquele negócio: sofria calada e alguns professores me defendiam e outros não. Achavam que mesmo eu sendo surda, usando os aparelhos, "deixava" de ser surda, e era uma pessoa normal e não sofria nada de bullying. Minha mãe era brava como só, me tirava da escola... rs. Eu não era considerada como boa aluna, porque tinha muita preguiça de prestar atenção na aula, mas o motivo era porque os professores não tinham nem um pouco de paciência comigo e por isso a preguiça de aprender e focar na aula. Quase nenhuma escola não tinham experiência em auxiliar uma criança surda e que fazia leitura labial.
4) E quando adulta você também teve dificuldades nas aulas?
Muita! Eu fiz faculdade de Direito. Prestei vestibular como PcD, mas não estava inscrita como aluna PcD. E acredite, não tive NADA de Intérprete Labial e/ou Libras. No 1° ano, estava sem os meus aparelhos auditivos (no colegial, um aluno quebrou os meus aparelhos e a mãe se recusou a comprar falando que o filho não tinha culpa e muito menos a escola também...) comentei com os meus pais que não dava: a minha classe tinha mais ou menos 100 alunos. O professor falava no microfone e ainda de costas. Mesmo você falando com os professores, nada adiantou, sempre tinha aquela frase clichê “Você não está mais na escola”. O mínimo que os professores tinham que ter era respeito pelos seus alunos com deficiência. Minha mãe foi comigo falar com a Diretora do curso e ela disse que nada poderia ser feito (detalhe, até ela era surda e usava aparelhos auditivos). Fui até o Centrinho de Bauru buscar os meus aparelhos e voltar com a aula normal. Alguns colegas me ajudaram? Sim, claro. Mas não foram o suficiente. Me ajudaram sempre com os materiais, algumas dúvidas na hora, estudar para a prova, enfim... Consegui me formar? Sim. Mas infelizmente não me formei com a minha turma. Me formei um semestre após. Mas o importante é que eu tenho o diploma na mão e eu devo isso a minha família pela minha conquista.
Hoje estou fazendo Letras e Libras, EAD. No começo tinha intérprete de Libras e Legenda nas aulas e depois parou. Tive que ir atrás do MEC para exigir por Lei a Legenda e Intérprete de Libras. E não é que consegui? Afinal, alguma coisa a Lei tem que funcionar, não é mesmo?
5) Sua forma de comunicação é oral ou Libras?
Os dois. Sou Bilíngue. Aprendi 100% Libras depois que saí da escola. Uso bastante o oral. Eu não tenho muito contato com a comunidade surda aqui em Santos. Primeiro porque eu estudei sempre em escolas e/ou classe com os ouvintes. Apenas uma escola que estudei onde alunos com deficiência eram separadas. Segundo que a minha fonoaudióloga achou melhor eu ser oralizada. Terceiro, minha mãe (na época, ela não tinha informação como hoje tem internet) achava que eu não iria falar mais caso eu usasse mais a Libras.
6) E como surgiram seus problemas visuais? Conte para nós.
Desde que eu me conheço gente por gente, sempre tive medo de escuro e barulho. Isso é até hoje.
Sempre fui ao oftalmologista e sempre tive o diagnóstico de miopia. Usei óculos forçada mesmo odiando e incomodava por conta dos aparelhos retroauriculares. Depois eu parei e a minha visão começou a piorar muito, embaçar demais a ponto de eu não enxergar nem o que estava a um palmo da minha mão.
Tudo ficava mais escuro do que o normal, embaçado, sabe aquelas manchinhas pisca-pisca preto-amarelo? Fica assim. E sem contar a minha falta de equilíbrio forte.
Desde a minha infância, sempre gostei de dormir no claro ou com alguma luz acessa que seja acessível, senão eu tenho medo, pânico e não sei explicar. Até os meus 23 anos mais ou menos, eu dividia o quarto com a minha irmã. E quando eu acordava para ir ao banheiro sempre batia, esbarrava em algum lugar ou nela mesma para ficar tocando tentando entender se não tinha nada na minha frente. E eu tive dois cachorros e os dois eram porte grande, só que a pelagem era escura. Então, caso eles estavam dormindo no meio do caminho, eu pisava na pata, rabo e davam um escândalo. Um era bem vingativo e outro não. E depois me acompanhavam para onde eu ia até eu ir para a cama. Fora de casa, na rua se tinha algum morador de rua dormindo no chão todo de mal jeito eu sempre tropeçava, pisava em alguns cachorros pequenos, ou degraus, chão quebrados, enfim. Nas baladas, sempre tinha algum mico quando eu estava sozinha e as meninas falavam quer que eu vá com você? Eu boba falava que não precisava. Ia e voltava esbarrando em alguém, na mesa, cadeira, paredes. Era bem complicado! Já caí no meio da balada. Quando eu saio no sol, me dá fotofobia e a minha visão demora muito para voltar ao normal. A claridade do sol me irrita mesmo com usando óculos de sol. Mesmo dentro de casa, se eu olho para a claridade, demora um pouco para voltar ao normal. E eu tenho muita sensibilidade nos olhos, como incômodo com qualquer coisa, coceira, irritabilidade, fica seco, enfim...
E a minha irmã me disse, vou te levar no oftalmologista novamente. Lá vamos nós em busca de oftalmologista que é especialista em tudo. Fui em Campinas, que era a melhor clínica, fiz todos os exames num dia só e o resultado foi: astigmatismo, miopia, deficiência noturna. Disse que é ligada a minha deficiência auditiva e que ela nunca vem sozinha. Pediu até para realizar um exame do pulmão. (nunca realizei).
Voltei para a minha cidade natal e marquei o oftalmologista para fazer todos os exames, contando “por cima”, por que na minha cabeça, achava que a maioria das coisas era tudo normal. Mesmo diagnóstico, mas falou que é Síndrome de Usher. Ela explicou bem por cima. Que é uma deficiência que não tem cura e que pode ir agravando quando ela for crescendo (idade). Eu era nova, né? Tinha acabando de entrar na faculdade.
Fiquei sempre renovando de 6 em 6 meses e depois mudei de médico por conta do meu pai (sempre fui aos mesmos médicos que o meu pai). E ele também deu o mesmo diagnóstico, só que é Síndrome de Usher, porém ele não sabia explicar quase nada.
Fui em outra clínica especialista em tudo, pedi para refazer todos os meus exames. Expliquei tudo, até o que eu achava paranóica da minha cabeça eu falei. Ela disse, é Síndrome de Usher, mesmo assim eu quero realizar todos os exames. Fiz e o diagnóstico é esse e é genético. E ela explicou como é e de onde vem. Minha irmã estava comigo nesse dia.
7) Ana Carolina você já tinha ouvido falar da síndrome de Usher antes de seu diagnóstico?
Nunca ouvi falar sobre essa Síndrome antes de ter o meu diagnóstico.
8) Qual foi a sua reação ao saber da síndrome de Usher? E sua família como ficou?
A minha irmã ficou super triste e com medo. Meu pai também. Minha mãe, na época não sabia como agir quando recebi o diagnóstico da cegueira noturna. Mas o diagnóstico de Síndrome de Usher, ela não participou pois ela faleceu há 3 anos. Eu, particularmente, me lidei com calma e agi normal. Já tenho noção do que pode acontecer comigo daqui para frente. Claro que não é fácil receber nenhum diagnóstico deste tipo. Mas irei fazer todos os acompanhamentos médicos como sempre e me cuidar ao máximo. Eu acho que meu namorado ficou assustado, muita coisa "nova" mas ele lida bem com isso e sempre está comigo superando todas as barreiras.
9) Você disse que seus pais são primos né? Vocês tem mais casos de retinose pigmentar e surdez na sua família? Alguém mais tem Usher?
Meu pai tem retinose pigmentar e tenho um primo, que os pais deles também são primos (igual os meus pais) com as mesmas deficiências que a minha, tipo primo idêntico.
10) Depois de saber da síndrome de Usher você passou a ter mais cuidados? O que você faz para evitar acidentes, tropeçar etc.?
Acho que quem tem mais cuidado é o meu namorado que me avisa, que pega na minha mão para me avisar. Agora, eu por mim, continuo a desleixada ao andar, tropeçar, bater, enfim... Não tem jeito. Quando a gente vai prestar atenção, é tarde demais. Mas já não ando mais de carro, por exemplo. Se eu já tinha medo, agora eu tenho mais ainda.
11) Você já pensou em usar bengala?
Já me falaram sobre isso. Mas nunca pensei em usar bengala no momento. Eu praticamente me acostumei em usar os pés ao descer as escadas, as mãos para saber o que tem na minha frente ou pegar em alguém quando está comigo para que eu possa me acompanhar. Eu sempre evito sair sozinha. O “sozinha” que eu vou é ao trabalho usar o trem e metrô isso em SP. Em Santos, eu ando sozinha para ir ao médico, compras, estudo, só de dia.
12) Como foi sua experiência no trabalho, no seu primeiro emprego?
Então, enquanto eu cursava a faculdade de Direito, eu sempre fiz vários estágios para experimentar, conhecer várias áreas. Foram fórum administrativo bem básico e não fazia atendimento ao público e escritórios de várias áreas, a maioria era devolução de processo, juntada de intimação e realizar processos. Nos escritórios não fazia atendimento ao público. E foram a curto prazo. No último, quinto ano/nono semestre (são 5 anos de curso, ou seja 10 semestres), eu queria prestar algum concurso de estágio para saber como era também. Prestei e passei em 1º lugar. E no ambiente de trabalho foi super tranquilo. Pessoas que sabiam lidar com a minha deficiência. Não fazia atendimento ao público. As reuniões, eram raras e quando tinha era apenas para falar sobre o trabalho e a mudança de hierarquia. Tivemos vários cursos na qual eles fizeram questão que eu participasse. Tudo conforme dentro do meu estilo. Pena que era por contrato de 2 anos ou até o término da minha faculdade. Tudo o que é bom dura pouco.
Quando eu fui para a área bancária, com atendimento ao público (Caixa) sofri bastante. Desde o começo sempre deixei explicado como funcionava a minha deficiência. Primeiro que quando eu fiz a entrevista, foi pelo telefone e acredite, era a minha irmã na outra linha, passando tudo para mim por leitura labial e eu respondendo no outro telefone para o RH. Onde que tinha acessibilidade? Depois, quando eu entrei, eu tinha que atender o telefone. Falei que me recusava, mas disseram que era obrigatório. E eu sempre, fugia quando o telefone tocava. Quando fazia atendimento no caixa, era um inferno astral para mim, pois é uma cabine de vidro, bem alta que nem sentar eu conseguia direito, só trabalhava em pé e tinha até um suporte para eu ficar mais alta. E por ser de vidro, a minha visão atrapalhava e eu não conseguia fazer a leitura labial 100%. E as pessoas do trabalho não entende, que eu não escuto e eles achavam que mesmo eu usando os aparelhos eu estava escutando igual um ouvinte. Pois é, eles nunca pesquisaram como trabalhar com PcD. Era gritaria por parte de clientes, funcionários para tentar comunicar comigo. Não participava de nenhuma reunião e nem festinhas (festa, era raro, viu? Só quando entrou vários funcionários novos que alguns ou outros me convidavam). Nunca me chamaram para sair com eles e nem nada. Sempre fui motivo de qualquer tipo de zoação de cada um. No começo eu chorava muito. Depois, comecei a sentir objetos caindo na minha cabeça para o pessoal me chamar, como papel, clips, caneta, elástico de borracha (até que um dia pegou no olho e no meu ouvido, me irritei profundamente). O local de trabalho, era super escuro para mim, então eu sempre esbarrava em qualquer lugar, mesa, cadeira, principalmente nos fios porque as tomadas eram no chão e longe das mesas. Quando eu entrava no banco, às 10h ou 11h o sol era muito forte, e a minha vista super frágil e com isso ela demora para voltar ao normal, ficava escuro e com aqueles pontinhos pretos e amarelos pisca-pisca, sabe? Demorava mais um menos de 5 a 10 minutos para a minha visão voltar ao normal. Pedi troca de cargo e resposta sempre era não, que “PcD entra como caixa e morre como caixa”, “que PcD é considerada como uma pessoa burra” ouvi (leia-se ouvi mas entenda-se como li pelo lábio) de um diretor responsável pelo sindicato disse isso. Mas ignorei e comecei a procurar outro emprego. Eu já estava muito cansada de assédio por dois lados e ninguém fazia nada. Até que um dia eu resolvi sair, pois o que valia mais para mim é a minha saúde e não o salário.
Hoje, na empresa atual, estou bem mais feliz. Tem vários funcionários PcD’s e em vários cargos. Onde todos em qualquer hierarquia, te respeitam e sabem lidar com todos os tipos de deficiência. E estão cada vez melhorando para trabalho sempre como um time. Tenho um orgulho enorme de trabalhar lá.
13) Infelizmente a maioria das empresas contratam PcDs apenas para cumprir a lei das cotas... pouco se se adaptam de acordo com as necessidades dos PcDs né?
Exatamente isso. Só contratam para cumprir a lei e não levar a multa. Que pena que maltratam PcD afetando o psicológico.
14) Você acha válido esta lei das cotas?
Eu acho super válido. Mas as empresas poderiam cumprir mais do que isso. Além das cotas, poderiam dar uma chance a mais para as PcDs. A maioria das PcD teve muitos recursos para estudar e a empresa oferece um cargo X a um salário X enquanto a outra que é uma pessoa “normal” está acima que nós e não fez nada.
15) Como advogada, você acha que falta muita coisa para melhorar o atendimento com PcDs?
Falta muita coisa a melhorar sim. Para atendimento público, transporte, calçada acessíveis em geral, na vida de estudante, lazer, saúde. Se eu for citar o motivo, iria escrever um livro.
Mas vou citar um exemplo. Vou ao SUS ou até ao atendimento particular, aviso que sou surda, que peço para me chamar quando é a minha vez, e o que a pessoa faz? Vai lá e grita. Principalmente quando você vai no Centrinho Auditivo e a pessoa fica gritando que nem um doido o seu nome. Gente, o nome já diz tudo. Não seria mais fácil você ir até o paciente e chamar ele? Pior ainda é não tem intérprete de Libras e nem leitura labial. Todos os médicos falam de costas ou com as máscaras (isso quando não tinha a pandemia). Enfim. Foi só um exemplo...
16) Você gostaria de falar mais sobre os direitos dos PcDs?
Sim, gostaria. Tem PcDs que não sabem quais sãos os direitos. Para o trabalho, vida social, compra de imóvel, carros, remédios e outros. As leis estão sempre mudando e todos precisam saber quais são os seus Direitos.
17) Ana Carolina, você acha que se tornou uma pessoa melhor depois que soube da síndrome de Usher?
Uma pergunta difícil... rs. Não digo que me tornei uma pessoa melhor por conta dessa deficiência. Mas me tornei uma pessoa um pouco mais informada sobre as duas deficiências.
18) Como você procurou estas informações? Com médicos, amigos, pela internet ou outros?
Internet. Eu sigo Crônica da surdez e li uma história idêntica à minha e mandei para a minha irmã. E vimos que vocês têm o Instagram.
19) Ana Carolina que conselho você daria para uma pessoa que acabou de saber que tem a síndrome de Usher?
Procure sempre conversar com médicos que conhecem essa Síndrome. Procure na Internet alguma rede social sobre essa Síndrome buscando ajuda. E fique calmo, que não é o fim do túnel. Tudo isso, um dia, alguém vai ter também e não é só com você. Mas não deixe de procurar um oftalmologista quando sentir que não está enxergando no escuro. Sim, isso é verdade.
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