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COM SÍNDROME DE USHER
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ENTREVISTAS COM PROFISSIONAIS
06/2024
MARCIA NORONHA DE MELLO
Durante o mês de junho comemora-se o Dia Internacional da Pessoa com Surdocegueira e temos a honra de apresentar a entrevista com a natalense, Márcia Noronha.
Atualmente ela é Professora do Núcleo de Atendimento Educacional à Pessoa com Surdocegueira - NAEPS e Coordenadora do setor de Educação Precoce no Instituto Benjamin Constant - IBC, no Rio de Janeiro - RJ.
Aqui ela nos conta toda a sua trajetória como pedagoga e o seu amor à profissão. Confira!
1) Marcia, conte para nós, como começou seu trabalho pedagógico e por que se interessou em trabalhar com pessoas com deficiência.
Comecei como professora de História na rede regular de ensino, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 70. Neste período nunca tive um aluno sequer com deficiência apesar de trabalhar na rede pública. Me aposentei ainda cedo e então resolvi ser ledora no Instituto Benjamin Constant.
Como ledora entrei em contato com pessoas com deficiência visual e iniciei então, motivada por eles, meus estudos na área da deficiência visual. Na época, frequentava a biblioteca do Instituto um grupo de pessoas com surdocegueira, usuária da Libras e me interessei pela língua de sinais e comecei a estudar sobre a surdez. Fiz, então, o curso de LIbras no INES, no RJ.
Estávamos no final dos anos 90, início dos anos 2000. A partir daí foi um pulo. Passei a trabalhar como voluntária no IBC e quando abriu concurso para a surdocegueira eu fiz, passei, e estou até hoje lá.
O meu trabalho com pessoas com deficiência, eu costumo dizer que foi por acaso, mas ao perceber as necessidades específicas das pessoas com deficiência visual fui me capacitando e hoje, além de atuar no setor de surdocegueira, dou os cursos de capacitação no IBC. Terminei meu mestrado em 2014 e meu doutorado em 2021. Ambos na Educação.
Tive ainda a oportunidade de ir a alguns congressos internacionais na área da surdocegueira, onde a Síndrome de Usher é sempre abordada. Hoje acompanho a Usher Syndrome Coallition, uma ONG norte americana, e também os sites do Retina Brasil e do Retina Rio.
2) O IBC é uma instituição muito conhecida e centro de referência na área da cegueira, não é? E como a IBC adaptou as aulas para alunos surdocegos?
Sim, o IBC é pioneiro. O setor foi criado como projeto em 1993 e virou um programa de atendimento em 1994 por iniciativa da professora Margarida Monteiro. O setor é especializado, ou seja, os profissionais que lá atuam têm formação na área da surdocegueira, da deficiência visual e dominam a Libras, embora tenhamos uma intérprete que nos ajuda e acompanha os atendimentos. O atendimento é individualizado onde se procura adaptar as formas de comunicação de acordo com a pessoa, além de aulas de Orientação e Mobilidade, e Atividades de Vida Diária. Também se procura oferecer Artes, fisioterapia e terapia ocupacional, bem como atividades na piscina de acordo com as necessidades de cada um. Procuramos fazer o nosso melhor, a equipe é pequena, mas é boa de luta... rs
3) Como é feito a triagem no IBC? Começa por onde? A maioria das famílias vem por indicação?
A triagem acontece sempre pelo serviço de oftalmologia no IBC que é uma residência médica que atende várias especialidades, inclusive da retina. A maioria vem por indicação, mas muitas pessoas ou famílias chegam por indicação de amigos também. Na escola o ingresso é por edital. Na reabilitação é só chegar e se matricular, desde que apresente os exames e documentos solicitados.
4) Conte para nós como foi seu primeiro contato com uma pessoa com surdocegueira ou mais especificamente pessoa com síndrome de Usher.
Meu primeiro contato foi com um jovem, na época com 19 anos, surdo profundo congênito que tinha acabado de receber o diagnóstico de retinose pigmentar. A família entrou em contato comigo, pois eu havia feito um anúncio para aulas particulares na área da deficiência visual e auditiva, e assim não só aprendi muito com esse rapaz, como pude acompanhar todo o processo de perda gradativa que ele enfrentou. Como era um rapaz muito inteligente e gostava de estudar, para resumir, fez o curso de pedagogia no INES e hoje é formado.
5) Depois deste aluno surgiram mais casos de alunos surdocegos?
Sim, no IBC eu conheci várias pessoas com surdocegueira e quando ingressei como professora efetiva tivemos tanto casos congênitos quanto adquiridos. E muitos que se enquadravam na Usher.
Hoje os casos que atendemos são bem mais complexos. Temos algumas síndromes neurológicas e um caso de sequela de Covid.
6) No caso destes alunos o atendimento é individualizado?
Sim, a maioria dos atendimentos são individualizados. Mas temos algumas atividades em grupo, como a aula de Artes, por exemplo. E algumas oficinas em que são incluídos e acompanhados por nós, por causa da comunicação.
Tem casos que demandam a presença de dois profissionais, como em Orientação e Mobilidade, por exemplo, atuam o professor e a intérprete. O setor da reabilitação não tem escolaridade, mas procuramos incluir os nossos alunos nas atividades coletivas da instituição e eventualmente damos suporte acadêmico quando se faz necessário.
7) Márcia, qual foi o seu maior desafio em trabalhar com pessoas com surdocegueira?
Procuramos dar suporte e orientação às famílias, uma vez que muitas vezes não conseguem entender os próprios filhos. Prefiro dizer que os desafios me motivaram a estudar. Em geral é fazer a família acreditar no futuro da pessoa. Encaminhar um jovem para o mercado de trabalho ou mesmo para os estudos ainda hoje é um desafio.
8) O IBC procura também ter uma linha de educação inclusiva ou não?
O IBC apesar de ser uma escola especializada, trabalha na perspectiva da inclusão.
9) E hoje, quais são as perspectivas que o IBC tem em relação às pessoas com surdocegueira?
O IBC em 2019 transformou o setor em Núcleo de Atendimento Educacional à Pessoa com Surdocegueira. Nós profissionais do setor lutamos para que nossa atuação se estenda às crianças. Temos várias crianças na escola com uso de aparelho auditivo, e que não são atendidas por nós por questões regimentais, mas estamos na luta.
10) De modo geral, como você vê as políticas públicas em relação às pessoas com surdocegueira?
Conheço o pessoal do Grupo Brasil e faço parte do GT Sentidos Brasil/Perkins. As políticas públicas ainda estão muito longe de cobrir as especificidades da surdocegueira. Considero que ainda falta muita ação para dar visibilidade. De um modo geral, o senso comum, a sociedade, não conhece uma pessoa com surdocegueira, criando estereótipos que não contribuem para a inclusão desse grupo.
Também faltam muitos serviços e principalmente espaços de apoio às famílias. Quando olhamos para as iniciativas de outros países com clubes, atividades ao ar livre, camping, viagens, etc. fico triste. O grupo ainda é invisível.
11) Marcia, depois que você se engajou no mundo de pessoas com surdocegueira, você sente que se tornou uma pessoa melhor?
Eu não sei se fiquei melhor...rs mas com certeza aprendi muito em relação às possibilidades de viver a vida com qualidade mesmo que por meio de outros sentidos. Isso me tornou uma pessoa mais humilde, mais paciente, sim, eu diria que aprendi a ser mais paciente, pois tirar uma pessoa do isolamento por causa da comunicação, ajudá-la a vencer seus medos, e vê-las sorrindo com as conquistas do dia a dia, nos torna mais humanos e humildes. É assim que me sinto.
12) Marcia, você tem uma mensagem para deixar para todas as pessoas que estão lendo esta entrevista, falar para elas sobre a surdocegueira e principalmente sobre a síndrome de Usher?
Sejam vocês mesmos. Acreditem em suas possibilidades. Você vai descobrir em você habilidades que nunca imaginou que tinha. E nunca esqueçam que vocês são pessoas, pertencentes à humanidade e como seres humanos temos, todos, o direto de sermos felizes. Só para dar um exemplo, hoje um jovem do nosso setor, com perda total da visão e parcial da audição descobriu que pode cantar e se apresentou com música de sua autoria num evento do IBC hoje. Eu diria FOCO, FORÇA e FÉ!
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